Renato Bezerra de Mello | O que a gente não tem coragem de jogar fora | 12 de setembro

Imagine voltar à casa da infância e encontrar um espaço vazio que não pode ser preenchido. No espaço onde o silêncio ganha densidade ruidosa e abafa as palavras dentro do peito, a voz que desejamos escutar não vive. Estranha sensação é precisar nascer de novo, dessa vez sozinho no mundo, grávido das formas de si. Para aquele que sempre quis preservar o instante, eis o desejo secreto. Quem nunca sonhou em parar o tempo? Somos nós a girar a ampulheta ou estamos mergulhados nos grãos de areia, deslizando por momentos irreversíveis, cada um a percorrer o próprio caminho? Na antiga sala de visitas, os móveis permaneciam resguardados por panos, mantendo a função de impedir a impregnação constante da poeira. Um mistério habitava esses objetos à espera do acontecimento: o dia para serem descobertos, e, no toque sútil do corpo sobre a mobília, saber que reside a promessa de intimidade com o mundo. No exercício de sonhar a memória, a casa da infância perdida na noite dos tempos profundos pode ser resgatada, assim como um barco que não desaparece no naufrágio e está apenas adormecido.

Na exposição individual O que a gente não tem coragem de jogar fora, o artista Renato Bezerra de Mello partiu de objetos e imagens guardados ao longo de sua trajetória, trazidos da infância, recebidos como herança ou mesmo produzidos durante seu processo de formação artística na França. Entre desenhos, esculturas, bordados e gravuras, o artista reinventa a memória através do gesto que busca tanto estancar o tempo, quanto propor novas formas para o corpo. Por meio de costuras que contornam para libertar a presença de sua ausência, o artista corajosamente se lança ao encontro do desejo de reparação, compreendendo que toda lembrança guarda em si uma cerimônia de adeus.

O encantamento na obra de Renato Bezerra de Mello começa no mergulho em sua coleção de afetos. Guardar é importante. E com delicadeza, sua metodologia de juntar e reunir objetos como próteses da memória, evidencia a percepção da expressão simbólica que atravessa e ressignifica a materialidade. A metáfora do espaço íntimo figurada em cada objeto revela, não apenas uma memória particular, mas sobretudo aponta para o complexo conjunto de interações que se dão sempre no campo social. Os objetos não estão destituídos de uma experiência intrínseca e são capazes de preservar o tempo das coisas vividas. Na produção de sua linguagem artística, Renato cria relações com sua coleção na potência de expandi-la e transformá-la. Em seu ateliê, o artista escuta o verbo contido dentro do tempo vivido de cada objeto, que por meio da ação de seu intento, são movidos para uma nova vida como obras de arte.

Nas páginas que introduzem os capítulos de um livro encontrado na casa de sua mãe, as minúsculas manchas de fungo chamaram a atenção do artista. Encontrou também um rolo de tecido fabricado na antiga confecção da família, que apresentava as mesmas pequenas manchas de formas irregulares. Usando uma paleta de cores variadas, tanto nas páginas de papel quanto sobre o tecido, o artista começou a desenhar contornos ao redor das manchas de fungo, com lápis de cor e linhas de costura. Pacientemente, o artista trabalha sobre esses materiais, com o desígnio de uma luta inglória contra a morte. No imaginário do tempo eterno, o artista estanca a projeção dos fungos com seu gesto criador, e instaura a beleza da vida no contorno da forma que constrói os limites necessários para impedir a decomposição. No arranjo que costura botões fora de suas casas, o artista desorienta a função do vestir-se para formar um grande cordão que atravessa o espaço, no qual encontramos a nós mesmos, os nascituros, e o nosso sentimento compartilhado de solidão e existência. Há muitos momentos em que não temos um modelo a ser seguido, e que habitamos a liberdade ao deixar surgir o descontrole. Na série de esculturas feitas com parafina e linha, Renato Bezerra de Mello inventa novas formas para órgãos sem corpo, como signos abertos ao desejo do ser que caminha para a descoberta de quem se é. Ao envolver com a linha os moldes de mãos produzidas em parafina, o artista descaracteriza a figura do corpo humano conhecido em sua exterioridade e normatividade, nos convida para entrar dentro do corpo e permitir a imaginação de novos órgãos, germinados pelas formas intuitivas. A viagem pelo interior do corpo é como entrar dentro de uma casa íntima e abrir os seus cômodos e armários. Na gaveta, estavam guardadas aquelas cartinhas antigas, escritas à mão, que cuidadosamente protegidas ao longo dos anos estavam envolvidas pela latência da espera. Um dia, o artista achou as cartinhas como quem descobre um tesouro escondido, tão raro quanto a arquitetura de uma caligrafia sagrada. Foi então que ele perguntou: por que vocês existem? E as cartas responderam: para não esquecer.

– Bianca Bernardo